Fernanda Virgilio e Ricardo Mancini
As lutas por terras e pelo direito à propriedade no Brasil foram iniciadas na invasão portuguesa em meados de 1500. Época na qual tais conflitos eram realizados a partir da disputa de força em confrontos violentos, para a imposição do domínio sobre a terra.
Este pensamento vingou por séculos no território brasileiro, e aliou-se a lógica de financeirização, em 1850, com a implantação da Lei de Terras, que buscou regulamentar a questão fundiária no país, tendo uma de suas resoluções a diretriz de que a partir de então, terras públicas só poderiam ser adquiridas através da compra, reforçando, assim, a ideia de propriedade atrelada ao capital e, de certa maneira, a força.
Foi na constituição de 1988, vigente até os dias atuais, que se consolidou a propriedade a partir de uma outra perspectiva, onde a justiça social passou a ser considerada na questão de distribuição de terras no Brasil, dando, assim, ao cidadão brasileiro direitos que condizem com o Estado democrático que é vigente no país, prezando a soberania popular e a dignidade da pessoa humana.
É colocada em pauta a questão da função da terra, que passa a receber um caráter social, ou seja, a terra não estaria mais relacionada apenas a seu proprietário, mas também teria que estar de acordo com o interesse público, evitando assim que imóveis e grandes áreas de terra permanecessem improdutivos. Portanto, aquele que possui a propriedade sobre a terra deve dar uso a ela, caso contrário, o proprietário, em tese, pode perder a proteção jurídica sobre seu título. Ou seja, o Estado não garante mais seus direitos sobre a mesma.
A propriedade privada no entanto é compreendida até hoje pela população como um direito individual, exclusivo, perpétuo e absoluto. Sendo essa visão o fruto de uma sociedade de cultura individualista, herdada pelos princípios da Revolução Francesa (1789-1799) e dos Estados liberais. Assim, são perpetuadas desigualdades insustentáveis que ferem aos direitos básicos dos cidadãos.
No Brasil, tal cultura é fortemente presente. Aqueles indivíduos que trabalham e usufruem da terra no seu dia a dia não possuem direito sobre ela, com este sendo só possível através da compra. Isso faz com que tal acesso seja inviabilizado para grande parte da população brasileira que, mesmo trabalhando, não possuem renda suficiente para realizar a compra da terra, resultando no déficit habitacional brasileiro, que chega aos 30 milhões de pessoas.
Tanto no meio rural quanto urbano, a disputa por terra continua extremamente incisiva e incentivada pela cultura capitalista e pela visão individualista do assunto. Um dos exemplos é a demarcação de terras indígenas, que apesar de ser um direito previsto em lei pela constituição federal, sofre com invasões comandadas pelos interesses agrícolas e com a pressão por uma parcela da sociedade que não consideram que os povos originários possuem direito real sobre as terras. Os povos nativos são, desta forma, invisibilizados, visto que seu direito à terra não se encaixa na lógica capitalista.
Além das conflituosas relações no meio rural, as disputas pela propriedade continuam fortemente no meio urbano onde há condições de moradia precárias e altos índices de déficit habitacional – segundo o IBGE, o déficit habitacional no país em 2015 era de mais de seis milhões de pessoas. Grande parte da população nos centros urbanos ainda não têm acesso ao básico, como água encanada e saneamento.
Na metade do século XX, com a industrialização, o país viu o aumento intensivo das migrações e do êxodo rural da população para os centros urbanos mais consolidados. Entretanto, as cidades brasileiras não tinham – e ainda não têm – capacidade de infraestrutura e nem assistência estatal suficiente para atender a toda essa nova demanda. Fazendo com que tais populações enfrentassem sérias dificuldades, e em muitas vezes impossibilidade, na obtenção de moradia digna, seja através do governo ou da compra. O aumento da população urbana superou a oferta de moradia, o que fez com que a população mais pobre precisasse se estabelecer em subempregos para garantirem sua sobrevivência.
Diante da incapacidade do governo e da inexistência de capital, as populações mais pobres começaram a se estabelecer por vezes em cortiços na região central da cidade, e depois partindo para a formação de favelas, através da autoconstrução nas bordas das cidades. Além dos problemas mais visíveis como a falta de infraestrutura nas periferias e a dificuldade de acesso ao restante da cidade, há outras restrições impostas a essa população em decorrência da falta de moradia, como por exemplo, a não garantia de acesso a saúde ou a educação, já que tais programas ficam restritos quando não se tem endereço fixo.
Frente a esta situação de extrema delicadeza e complexidade, nos é urgente trazer atenção a alternativas possíveis para a diminuição do déficit habitacional brasileiro. Junto a isso, é necessário trazer para a consciência da população comum que a moradia digna é um direito constitucional e que é dever do Estado garanti-lo a toda a população, independente da classe social e independente da lógica de propriedade, já que a função do Estado deve ser fornecer acesso à moradia e não a propriedade.
Uma das maneiras viáveis de se combater o déficit habitacional é fazer valer a lei de função social, fazendo com que o governo consiga utilizar edifícios prontos, mediante reforma, para acomodar diversas famílias, tendo um custo bem mais baixo do que construir um empreendimento do zero – contando que muitas vezes essas novas construções são feitas em locais que não possuem a infraestrutura necessária para receber os moradores, ou seja, onde novos investimentos serão necessários. O que não é um problema com os prédios abandonados, já que a maioria deles estão no centro, garantindo o acesso ao direito a cidade para os moradores, sem um custo a mais para tal.
Criminalizados por muitos, os movimentos sociais de luta pela moradia acabam sendo vítimas de muita falta de informação por parte do restante da população, e por vezes “má intenções”, que buscam criminalizar as ações do movimento, disseminando a desinformação, principalmente pela internet, através de notícias não confiáveis e “memes” que acabam por desmoralizar a luta. Cria-se assim, a imagem de que os movimentos “invadem” qualquer tipo de lugar, seja um terreno qualquer ou até a casa de alguém.
A desinformação, ou as informações falsas, acabam contribuindo para que a luta seja invalidada e garantindo com que o poder público se sinta confortável em se manter alheio a resolução do problema, já que a falta de apoio popular faz com que o Estado não se sinta pressionado para atender as demandas das populações mais vulneráveis.
Sendo assim, é necessário mostrar como realmente funcionam os movimentos sociais e como são feitos os processos de ocupação, para que as pessoas que são leigas no assunto consigam perceber que na verdade os imóveis é que estão ilegais por terem sido abandonados, atendendo a especulação imobiliária e não as pessoas. E entender a atuação dos movimentos sociais é defender a Constituição Federal. Eles fazem o papel que o Estado deveria fazer, mas não faz, já que o mesmo se prende mais aos interesses do capital do que aos da população.
A primeira ação realizada pelos movimentos é o mapeamento dos imóveis e terrenos que estão em situação ilegal pela cidade. Nesse caso, se enquadram como ilegais aquelas propriedades que não estão cumprindo a sua função social, como explicado anteriormente. O Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/2001) estabeleceu a função social da propriedade como um princípio básico na Constituição, afirmando, mais uma vez, que a propriedade transpassa o direito individual.
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2° desta Lei (BRASIL, 2001)
A partir desse mapeamento é identificado, dentre todos esses imóveis vazios – no caso da cidade de São Paulo há cerca de 40 mil imóveis nessas condições – os que melhor cumprem os pré-requisitos para serem considerados como os mais favoráveis para ocupação. É levado em conta tanto a estrutura do imóvel em si quanto a localização dos mesmo, buscando garantir que no futuros os moradores sejam contemplados com mais um direito previsto em lei no Estatuto da Cidade, o direito à cidade, ou seja, garantia de acesso ao equipamentos e serviços ofertados.
Na política urbana, de algumas cidades brasileiras, como São Paulo, já foi regulamentado um instrumento urbanístico para coibir a subutilização de imóveis. O imóvel que não está cumprindo sua função social é notificado por meio do PEUC (Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios) e é dado o prazo de 1 ano para que o proprietário dê uso ao imóvel. Passando o prazo, quando não há nenhuma atitude por parte do proprietário, a Prefeitura passa a cobrar o IPTU progressivo pelo prazo de 5 anos. Se mesmo após os 6 anos totais de prazo o imóvel continuar sem cumprir sua função social, a Prefeitura pode tomar o imóvel mediante o pagamento de títulos da dívida, através da chamada “desapropriação-sanção” ou “desapropriação urbana sancionatória”, como regulamenta o Estatuto em seu art. 8º no inciso III, § 4º, do art. 182 da Constituição Federal.
Art. 8º. Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública.
Os Movimentos Sociais de moradia atuam, portanto, quando esse papel que deveria ser do Estado não foi cumprido, fazendo o mapeamento dos imóveis vazios e subutilizados, junto a identificação das pessoas que estão em situação de vulnerabilidade e necessitam de moradia. Assim, se tem um controle para que essas pessoas sejam direcionadas às novas ocupações de acordo com suas necessidades. O cadastramento é feito tanto a partir da busca por parte dos moradores, quanto por parte dos movimentos, que vão até as periferias, ou outros locais onde hajam pessoas morando em condições precárias, verificar quem tem interesse em se juntar ao movimento.
Com locais mapeados e a lista de pessoas, o movimento pressiona a Prefeitura para que esta comece os trâmites legais para a desapropriação daquele terreno ou imóvel. Muitas vezes os movimentos realizam também uma busca por profissionais para a realização de um projeto de viabilidade para a readequação dos imóveis para uso como moradia, e podem chegar a desenvolver projetos arquitetônicos, no caso de terrenos, e projetos de reforma, nos casos de ocupações em edifícios. Com os projetos em mãos, se começa novamente a conversa legal com o Estado para tornar viável execução dos mesmos, junto a disponibilização de recursos.
As famílias que vivem nas ocupações são a representação do descaso do Estado e do resultado da especulação imobiliária. A Prefeitura desrespeita o Plano Diretor ao não notificar os proprietários que não estão cumprindo sua função social, e os proprietários desrespeitam a lei ao não darem uso ao seus imóveis, por vezes buscando a valorização ao longo dos anos. Nessa equação, é a população mais vulnerável que sofre as consequências, tanto por parte do Estado, ao não terem seus direitos garantidos, quanto pela sociedade, que as enxergam como criminosas. Sendo assim, precisamos compartilhar as reais informações e motivações de todo esse processo, para que a população possa mudar seu modo de enxergar as ocupações e ajudar a fortalecer esse elo tão fragilizado das famílias sem moradia.
*Imagem destacada: Ocupação Prestes Maia, São Paulo SP, 2018 – Foto: Jeroen Stevens
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