Brenda Belchior, Camila de Branco e Sofia Alves
Contexto histórico
A questão quilombola vem sendo amplamente discutida no Brasil desde o período pós- abolição, uma vez que é excepcionalmente importante compreender os meios de evolução dos direitos desiguais dos diversos grupos étnicos que nasceram no período colonial, e que foram ignorados e abandonados na composição da nação brasileira e somente ressurgiram no final do século XX. As terras de quilombos são espaços étnicos-raciais baseadas em ocupação coletiva fundada na ancestralidade, em tradições culturais próprias, e expressam a resistência com as formas de dominação, as quais trouxeram consequências, tais como a dificuldade de organização territorial. Atualmente a regulamentação fundiária está assegurada pela Constituição Federal de 1988, que garante o direito às terras ocupadas pelas comunidades Quilombolas através da seguinte redação: ART 68. Aos remanescentes das comunidades de Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1988).
Compreendendo a cultura como resultado das relações humanas, é nítido nas cidades e nos espaços públicos a reprodução dessas relações, sendo assim, estes são o meio físico pelo qual as relações sociais se propagam, já que “o espaço público tem que nos dizer não somente onde estamos geograficamente, mas também onde estamos em nossa cultura” (KUNSTTER, 2004). Portanto, o sentimento de pertencimento diante aos valores e à realidade histórica e cultural própria dos quilombolas, faz com que esse contexto reflita na sua identidade e possibilita que ele se reconheça enquanto indivíduo que faz parte de um fenômeno de agrupamento de escravos fugidos, pertencente a um conjunto maior, à cultura quilombola.
Atualmente, a principal luta dos quilombolas se volta para a implementação de seus direitos territoriais. Os quilombolas priorizam a coletividade no uso da terra, e os que apresentam interesses contrários aos direitos quilombolas contestam o direito aos territórios das comunidades que se tornam inalienáveis e coletivas. As terras tituladas por esses grupos cumprem uma função social, visto que sua organização se baseia no uso dos recursos territoriais para a manutenção social e cultural, distante do comercial. São territórios que colocam em crise o modelo de sociedade baseado na propriedade privada como única forma de acesso à terra, instituído desde a Lei das Terras, de 1850, pois, contrariam interesses imobiliários, de instituições financeiras, latifundiários, e de grandes empresas.
Políticas públicas e papel do Estado
Há contradições e debates diante do conceito de campesinato e agricultura familiar, os quais marcaram e transformaram as lutas sociais da classes camponesas. O que ocorre é que há uma dificuldade acerca da definição desta classe diante de um cenário capitalista, sendo assim importante ressaltar alguns fatores sobre ela: seu compreendimento ultrapassa o âmbito econômico e é necessário entender que eles operam de maneira coletiva e compartilhada, visando o consumo para a família e não o lucro. Assim é um equívoco definir um agricultor desta instância pela lógica empresarial.
Com a Constituição Federal de 1988 há mudanças significativas em relação às lutas das comunidades quilombolas, demarcando territórios e criando políticas públicas. Em 1995, foi criado o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) na presidência de Fernando Henrique Cardoso para aplacar as pressões sociais, que em primeiro momento foi voltado para o crédito, segurança e inclusão. Em 1997 e 1998 estas políticas adotaram um viés social, buscando por exemplo, a redução da mortalidade infantil, a alimentação, saneamento e fortalecimento da agricultura familiar. No governo Lula, estas medidas se perduram e foram adicionadas novas linhas do Pronaf. Em 2008, foram implementadas a Política de Preços Mínimos para produtos de sociobiodiversidade para garantir a comercialização de produtos de agricultura familiar. Em frente a este cenário é importante ressaltar que ao longo dos anos, há um embate fruto de tensões inerentes ao Estado para a implementação destas políticas, conquistadas após anos e anos de luta e ainda hoje, foco de tensão e conflito.
Somente no governo Lula é que surge a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR), o qual passa por dificuldades de implementação resultando na criação do Programa Brasil Quilombola (PBQ) em 2004, diante de novas pressões sociais. Para os Quilombos, esta torna-se a principal política pública em vigor para a comunidade. Com a criação do PQB, finalmente surge adaptações das políticas do campesinato específicas para comunidades quilombolas.
O PBQ tem como plano de ação abranger quatro eixos: (1) regularização fundiária, (2) infraestrutura e serviços, (3) desenvolvimento econômico e social e (4) participação social. Há a agenda Social Quilombola, que atua no acesso à terra, infraestrutura e qualidade de vida, tratando de questões como inclusão, violência e vulnerabilidade. O Comitê de Gestão da Agenda Social Quilombola possui como objetivo articular as ações da Agenda.
A Lei estadual 10.207/1999 confere a criação da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), o qual executa as políticas agrárias e fundiárias do Estado, demarcando e identificando as terras devolutas ocupadas por comunidades de quilombos. Além disto, também foi estabelecido as terras ocupadas por quilombolas como patrimônio da Fundação. A questão da titulação se deu por um processo tardio, responsabilizando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para regulamentar os processos administrativos de demarcação do território. A titulação de terra torna-se uma das pautas mais importantes para as comunidades quilombolas, uma vez que, na ausência dela, os territórios ficam inacessíveis para as políticas públicas, enfrentando dificuldade de acesso para serviços básicos como saúde e educação.
No cenário atual, apenas 7% das terras reconhecidas como pertencentes a povos remanescentes de quilombos estão regularizadas no Brasil. A maioria das terras tituladas foram as situadas em regiões de menor custo financeiro para o Estado. Assim, ainda hoje este povo sofre uma grande violência institucional por parte do Estado, privando a maioria das comunidades de acesso a estas políticas e conquistas.
Cultura e Identidade
Por mais que as comunidades quilombolas tenham se formado ou funcionem de formas bastante diferentes entre si, devendo ser compreendidas a partir de suas singularidades e estruturas específicas, elas têm o passado de escravidão e luta, a priorização da coletividade no uso da terra e a consequente simbolização de resistência à sua mercantilização como pontos comuns à todas.
Para compreender a cultura quilombola, deve-se partir do imaginário social construído por seus sujeitos, que nos remete a um passado comum de escravidão, lutas, fugas e constituição de quilombos.
Espaço de trocas e compartilhamento de conteúdos simbólico-afetivos, permite aos sujeitos que se sintam pertencentes a esse universo particular e se apropriem de valores e conteúdos inerentes à realidade em questão (Furtado, M. B.; Pedroza, R. L. S; Cândida B. A., 2013).
A terra habitada é um elemento essencial no que diz respeito à identidade coletiva e à afirmação da cultura dos povos quilombolas, configurando o espaço e o contexto de inserção dessas comunidades. Determinado grupo sempre reafirmou seu modo de vida, sua história, valores, religiosidade, símbolos e costumes em um lugar específico. Por se tratar de sociedades que, em geral, são muito conectadas à suas ancestralidades, é impossível se pensar em uma manutenção dessas culturas em outros espaços.
Elementos como a territorialidade, as relações sociais comunais e a formação econômica e social imprimem nessas comunidades características específicas e uma identificação étnica própria. Para os quilombolas, pensar em território é considerar um pedaço de terra para usufruto coletivo, como uma necessidade cultural e política de se distinguirem, de se diferenciarem de outras comunidades e decidirem seu destino próprio (Furtado, M. B.; Pedroza, R. L. S; Cândida B. A., 2013).
Os quilombos por essência sempre representaram uma forma de ruptura com as lógicas de uso e propriedade privados da terra impostas pela classe dominante e colonizadora. Desde o período colonial, os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos de lugares que haviam escolhido para viver. Quando passaram a se formar essas comunidades e diante de uma legislação que excluía qualquer possibilidade de aquisição de terra que não fosse pela compra, o simples fato de negros ex-escravos começarem a se apossar de pequenos pedaços de terra já representou uma oposição ao sistema escravista e latifundiário vigentes no Brasil à época. Deram-se como núcleos paralelos de poder, com uma outra forma de organização social, de moradia e trabalho, focalizando as atividades agrícolas para a subsistência.
Até os dias atuais, formas coletivas de usufruto da terra, como os quilombos, seguem simbolizando um ato de luta e guerra. Mesmo que contem com registros de comprovação de posse, há uma constante ameaça ou até a efetivação de expropriações dos territórios habitados há séculos por essas comunidades, resultado de pressões de fazendeiros das proximidades ou daqueles interessados no valor dessas terras. O cenário atual remonta, portanto, ao passado de exclusão em que os negros eram expulsos e removidos de seus territórios. As noções de pertencimento e de identidade são sistematicamente negadas a essas populações por meio do silenciamento e da invisibilização de suas existências.
*Imagem destacada: Cedefes, Acervo Fotográfico Quilombolas <https://www.cedefes.org.br/quilombolas/#carousel27570>
Referências Bibliográficas
Furtado, M. B.; Pedroza, R. L. S; Cândida B. A. (2013).mCultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural. Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil.
FAKIH, Tamires Arruda. Políticas públicas e comunidades quilombolas: o modo de vida quilombola na comunidade Sapatu. 2018. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
SILVA, Marcelo Gonçalves da. A titulação das terras das comunidades tradicionais quilombolas no Brasil: análise da atuação do Estado. 2017. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
PEDROSO JUNIOR, Nelson Novaes et al . A casa e a roça: socioeconomia, demografia e agricultura em populações quilombolas do Vale do Ribeira, São Paulo, Brasil. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum., Belém , v. 3, n. 2, p. 227-252, Agosto. 2008 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81222008000200007&lng=en&nrm=iso>. acesso em 23 Nov. 2020.
FURTADO, Marcella Brasil; PEDROZA, Regina Lúcia Sucupira; ALVES, Cândida Beatriz. Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 26, n. 1, p. 106-115, Abril. 2014 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822014000100012&lng=en&nrm=iso>. acesso em 23 Nov. 2020.