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Cooperativas uruguaias e mutirões autogeridos no Brasil: em busca de alternativas para o acesso à moradia.

COVICIVI 1, anos 1994/98 – 3ª geração. Autora: Anaís Jorcin

Gabriela Sá, Luisa Teperman e Juliana Simantob

O modelo de cooperativas uruguaias como uma das soluções para o diminuir o déficit habitacional se mostrou extremamente eficiente, colocando o Uruguai como um dos países mais bem colocados nessa questão na América Latina. O Brasil, por outro lado, segue como um dos dois países com maior problema habitacional deste mesmo ranking. No Brasil existem alguns programas e políticas públicas que visam enfrentar o problema da moradia, como o programa MCMV, a política de Bolsa Aluguel, o programa de locação social, entre outros. Porém não se observa nessas tentativas, uma medida que consiga abarcar o país como um todo e que ofereça alternativas ao acesso à moradia além da privada, de modo tão bem sucedido como se mostra a experiência das cooperativas no Uruguai.

Assim, vamos tentar estabelecer um paralelo do modelo uruguaio com um programa ou política pública brasileira de habitação já existente, e tentar listar que possíveis obstáculos que estão no caminho de tornar tal política ou programa tão efetivo quanto se mostraram as cooperativas. 

Para tal compreende-se a necessidade de traçar um panorama histórico desses programas em seus respectivos países. Começando pelas cooperativas uruguaias, que visam combater o déficit habitacional, por meio de contrato firmado entre os cooperados. Dessa forma, garantindo que cada família tenha direito de uso das habitações, mas a posse da unidade seja exclusiva da cooperativa. Serão analisadas as quatro gerações que marcaram esse sistema habitacional conhecido mundialmente. 

Em um contexto de inflação acentuada e recessão da primeira década de 1960, foram formadas as primeiras três cooperativas de ajuda mútua como uma possível solução para o problema da habitação social. O Time 10, composto por funcionários públicos, arquitetos e parlamentares, era responsável pela assessoria técnica dessas. A partir da segunda metade de década de 60, a crise econômica se agrava, fazendo com que a população abraçasse as cooperativas de habitação e pressionar o governo para a aprovação de uma legislação de Habitação Social Cooperativista. Cria-se, assim, a Lei Nacional de Vivienda, dando início à segunda geração. A partir do momento em que esse sistema de habitação é legitimado, passa a ser reproduzido em larga escala.

Contudo, em 1973, ocorre o golpe militar, marcando a instauração de medidas de retrocesso, contrárias às questões sociais em ascensão até então, dentre as quais o cooperativismo. Por mais que grande parte da população apoiasse o sistema de ajuda mútua, o governo instaurou uma série de medidas para desestimulá-lo, dentre as quais: atrasar o andamento dos processos de liberação dos terrenos, a aprovação de projetos e até a aprovação de créditos (BARAVELLI,2006). Nesse período, o Governo ditatorial instaura a Lei de Propriedade Horizontal – que alteraria a propriedade coletiva para privada – numa tentativa de aniquilar as cooperativas. Entretanto, essa iniciativa foi barrada pelo poder legislativo devido a mobilização entre FUCVAM e cooperativas, que angariou mais de 500 mil assinaturas em prol das propriedades coletivas. 

A terceira geração, de 1989, é marcada por novas problemáticas encontradas na cidade, tais quais o êxodo urbano, a expansão urbana limitada e o esvaziamento das áreas centrais e de edifícios patrimoniais deteriorados. Nesse sentido, foram pulsantes as discussões relativas à reabilitação dessas ruínas, inicialmente no centro histórico, em maioria de relevância patrimonial. A Prefeitura, assim, cria o Programa Piloto de Reciclagem e se vale da ajuda mútua e da autogestão para a requalificação dessas áreas.

Por fim, a quarta geração representa o sistema na contemporaneidade, em que o Estado assume maior responsabilidade sobre essas políticas públicas de habitação, destinando quase metade do financiamento público da habitação ao cooperativismo, prevendo maior replicação e sucesso desse meio de morar. Critica-se, entretanto,  uma falta de adequação dos projetos às demandas contemporâneas, como ao implantar unidades habitacionais com com muita baixa densidade em uma área em que mais pessoas poderiam se beneficiar de tais morfologias urbanas (CASTILLO, 2016).

No Brasil, diferente do Uruguai, em que são culturalmente bem recebidas outras formas de habitar como a moradia em comunidade e o aluguel – tem-se a propriedade privada como símbolo de seguridade e portanto, um bem valioso almejado na vida das classes econômicas mais baixas. Devido a isso, a grande maioria dos programas habitacionais brasileiros surgem através de legislações específicas que incentivam a propriedade privada.

Essa herança de restrição histórica das terras brasileiras vem, em parte, pela Lei de Terras de 1850, uma das primeiras tentativas de organização da propriedade privada no Brasil que mostra o quanto esta era propositalmente destinada apenas à uma pequena parcela da população. A lei surgiu por conta do risco de formação de pequenas propriedades familiares autogeridas voltadas para o mercado interno, assim o governo federal pressionado pela aristocracia rural, passa a precificar as terras a altos valores para impedir que imigrantes e homens livres tivesse acesso à terra. E assim nasce a enorme problemática frente o acesso à terra entendido como direito universal por lei.

Mais tarde, no século XX com o aumento da população morando em áreas urbanas brasileiras viu-se necessária a criação de diversas leis para regulamentar o mercado imobiliário e atender à imensa demanda habitacional. Porém, entendendo que a propriedade privada disponibilizada pelo mercado imobiliário não seria acessível à todos, o governo criou programas de incentivo para possibilitar a compra da casa própria. Primeiramente com o BNH em 1970 e posteriormente em 2009 com o Programa Minha Casa Minha Vida.

Somente a partir da década de 1990 que os estudos brasileiros desenvolvidos para solucionar o déficit habitacional no ramo dos aluguéis e cooperativas começam a ganhar corpo. Apesar da primeira cooperativa habitacional surgir em 1951 no Brasil, o setor cooperativista cresceu somente a partir de 1992 após a extinção do BNH (Banco Nacional de Habitação) em 1986, que gerou um momento de enorme desordem na questão habitacional brasileira. O ramo das cooperativas habitacionais podem vir a ser uma solução importante para enfrentar as necessidades habitacionais, de forma eficiente e viável (OCB, 2004), através das cooperativas destinadas à construção, manutenção e administração de conjuntos habitacionais. O grande diferencial das cooperativas é a construção de habitações por preços acessíveis, sem ter o lucro como objetivo central, e destinados a grupos sociais específicos, na maioria das vezes organizados coletivamente.

As cooperativas brasileiras são, em geral, formadas no formato de consórcios para a construção de casas, que após a entrega das obras são liquidadas. Em concomitância com o desenvolvimento das cooperativas, outros projetos que visam diminuir o déficit habitacional dentro do modelo de autogestão também  foram surgindo no Brasil. O que mais se aproxima do modelo de funcionamento das cooperativas uruguaias são os mutirões autogeridos. Estes são organizações de civis que contam com apoio financeiro e técnico da prefeitura para construção de moradia. Um ponto essencial é que o processo de tomada de decisões e elaboração do projeto é gerido pela própria comunidade de futuros moradores, juntamente com a assessoria técnica. A construção das moradias é feita através de mutirões: trabalho manual não remunerado realizado pelas próprias famílias participantes, assim toda a comunidade ajuda na construção das moradias.  

O mutirão autogerido no Brasil se assemelha às cooperativas uruguaias ao contar com os mesmos 3 atores para funcionar: a organização civil, que vai fazer a gestão e participar do mutirão; um grupo de assessoria técnica, que assiste o projeto arquitetônico e obra; e o agente financeiro, público, que provêm o financiamento e garante a qualidade de moradia. Ambos dependem de uma movimentação e organização da própria população, e sua participação integral para tomada de decisões sobre o andamento do projeto, juntamente com a participação dedicada ao processo de construção das moradias através dos mutirões. Ou seja, ambos têm como principal peça para o funcionamento a organização e mobilização conjunta da sociedade civil, e seus apoios públicos que viabilizam o projeto pela questão legal e financeira. 

Apesar de possuírem tais semelhanças gerais, os dois modelos que visam solucionar o problema da moradia se diferem em muitas outras questões, e talvez nessas diferenças é que fique evidente porque as cooperativas são mais efetivas do que os mutirões autogeridos. Primeiramente talvez a maior diferença esteja no conceito de cooperativas, e na mentalidade da posse da terra coletiva estabelecida do Uruguai, que se mostra muito diferente da modalidade da propriedade privada e o ideal da casa própria que se estabeleceu no Brasil. Quando uma terra é cedida pelo poder público para uma cooperativa, a posse fica em nome da organização, isso significa que, apesar de cada família receber um imóvel para si, ela não podem fazer a revenda. Já no Brasil, apesar de todo o processo ser feito pela comunidade, no fim cada família recebe a posse do imóvel, particularmente. Isso acontece porque, diferentemente do Brasil, o Uruguai possui um conjunto de leis específicas que garantem a propriedade coletiva da moradia e um fundo nacional que garante a entrada do subsídio necessário. Essa foi uma estratégia bem-sucedida para garantir que o preço a ser pego pelas famílias se mantenha sempre estável, não estando sujeito às variações de mercado.

No município de São Paulo foi sancionada a Lei de Autogestão na Moradia nº 16.587 pela gestão do então prefeito Haddad, de autoria do Vereador Nabil Bonduki em 2016. A legislação objetiva garantir a legitimidade e previnir a criminalização do processo de mutirões autogeridos, ao passo que consta no seguinte artigo: “Art. 4º Fica o Poder Executivo autorizado a criar o programa municipal de produção da habitação de interesse social, denominado Autogestão na Moradia, destinado à construção de empreendimentos habitacionais de interesse social em parceria com associações e cooperativas habitacionais devidamente habilitadas no âmbito da Secretaria Municipal de Habitação.”  

Ou seja, para existir a parceria do poder público as organizações civis precisam estar habilitadas na Secretaria Municipal de Habitação para serem legitimadas. Em comparação com o sistema das cooperativas uruguaias, a existência da FUCVAM – Federação Uruguaia de Cooperativas de Vivienda de Ajuda Mútua, já legitima, coordena, e articula os esforços e trabalho conjunto, funcionando como uma federação com caráter sindical. A falta de uma personalidade jurídica, autônoma e democrática é um dos grandes empecilhos para implementação de mutirões autogeridos em larga escala. 

Ao traçar o paralelo histórico e entender a contextualização em que ambos programas foram instituídos, percebe-se que um dos maiores obstáculos enfrentados pelo Brasil no que se diz respeito à efetividade de implementação abrangente é a fala de uma legislação específica que garanta a continuidade e estabilidade dos programas e políticas públicas de habitação autogerida. Como barreiras estão tanto a descontinuidade dos projetos pelos governos que se tornam vigentes, quanto a rígida herança cultural brasileira que valoriza a obtenção de casa própria em propriedade particular. Como visto, o que alavancou o sucesso das cooperativas uruguaias, além de sua boa estruturação, foi o apoio direto da sociedade civil em instaurar um sistema cooperativo, não só no âmbito habitacional mas em diversas camadas estruturadoras do país. 

Referências Bibliográficas

BAVARAVELLI, José Eduardo O cooperativismo uruguaio na habitação social de São Paulo. Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação da FAU/USP, 2006.

FARIA, Thaís Fernandes. Mutirão autogerido na produção de espaços e desenvolvimento social. 2017. Trabalho de conclusão de curso para Graduação em Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design, Universidade Federal de Uberlândia, São Paulo, 2017.

NASCIMENTO, Eduardo. Cooperativas de habitação por ajuda mútua no Uruguai: um estudo de caso sobre a FUCVAM. Monografia para curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.

RICARTE, Renê. A evolução do direito de propriedade ao longo das Constituições brasileiras, com ênfase na ideia de função social da propriedade. Jus.com.br, 2014. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/32656/a-evolucao-do-direito-de-propriedade-ao-longo-das-constituicoes-brasileiras-com-enfase-na-ideia-de-funcao-social-da-propriedade> Acesso em: 02/10/2020.

<http://autogestao.unmp.org.br/experiencias/lei-da-autogestao-em-sao-paulo/> Acesso em 02/10/2020.

<https://www.fucvam.org.uy/declaracion-de-principios/> Acesso em 02/10/2020.

<https://www.archdaily.com.br/br/947330/a-experiencia-cooperativista-de-habitacao-no-uruguai-um-breve-panorama-historico/5f57d0bab35765e32a000383-a-experiencia-cooperativista-de-habitacao-no-uruguai-um-breve-panorama-historico-imagem > Acesso em 2/11/2020

Cooperativas uruguaias e mutirões autogeridos no Brasil: em busca de alternativas para o acesso à moradia.
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