Ana Clara Rennó, Fernanda Teixeira e Nara Albiero
Introdução
A situação fundiária no Brasil é um problema histórico marcado pela concentração de terras e pela carência da atuação do Estado no sentido de ponderar a questão da propriedade na perspectiva da solução da falta de condições mínimas de acesso à terra como fator de dignidade humana.
No espaço urbano, a posse da terra não está ligada diretamente à produção, mas à possibilidade de acesso ao trabalho, à infraestrutura de saúde, educação, transporte, lazer oferecidos nas cidades, sendo que a proximidade, o acesso e a disponibilidade desses recursos também afetam o setor imobiliário, que muitas vezes vê o território da cidade apenas como uma mercadoria, como valor de troca e não com valor de uso.
Foi nesse contexto que, há oito anos ocorreu na região sul da cidade de São José dos Campos, no Vale do Paraíba do estado de São Paulo, o violento episódio da desapropriação do conhecido terreno do Pinheirinho, resultado da Massa Falida Selecta, pertencente ao empresário Naji Nahas, dono do grupo Selecta S/A, que declarou falência nos anos 1990.
A sucessão de decisões acerca do terreno que culminaram na reintegração de posse
Localizado na região sul da cidade de São José dos Campos, o local foi ocupado por um grupo de aproximadamente 1.789 famílias no ano de 2004. Apesar das inúmeras tentativas de regularização do lote para que fosse assegurado o direito à moradia das famílias, a proposição da Reintegração de Posse foi deferida pela Juíza da 6ª Vara Cível de São José dos Campos em 2012.
Assim, foi posto em curso o despejo de todos os aproximadamente 9 mil moradores à época, em uma ação extremamente violenta e que não contava com nenhum planejamento prévio para fornecer uma estrutura digna para realocação das pessoas que habitavam a área. O acontecimento teve repercussão internacional devido ao descaso com a vida dessas famílias e o processo violento que se deu a remoção, bem como o alto gasto público dispensado na operação, que poderia ter sido investido em projetos de habitação de qualidade para os moradores.
Ocioso desde o momento de sua compra em 1982, o terreno valia 7 milhões de reais à época de sua ocupação em 2004, valor inferior ao que Nahas devia à prefeitura por IPTU (AMORIM, 2013). Naji Nahas é tido como responsável pela quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em 1989 e também fora preso em 2008 na operação policial Satiagraha por crimes no mercado financeiro. Desde então o terreno permaneceu abandonado e ocioso, sem cumprir função social.
A ocupação do Pinheirinho foi feita pelo Movimento Urbano dos Sem Teto (MUST), após um pequeno grupo de famílias já ter sido removida de outras áreas da cidade. O terreno de 1,3 milhão de m², por estar em uma zona industrial, com bom acesso à infraestrutura, serviços e, principalmente, por estar abandonado, foi um grande atrativo para essas famílias.
Haja vista que muitos não possuíam salário capaz de adquirir habitações através do mercado imobiliário e a fraca política habitacional do município (DE CASTRO; DE SOUSA, 2019, p. 3), buscaram seu espaço independentemente da ação estatal. Segundo Forlin e Costa, 90% da população do bairro era originária de São José dos Campos (COSTA, FORLIN, 2010 apud. GNANN, BERNARDINI, 2019, p. 14), ressaltando que a ocupação surgiu a partir de uma necessidade de moradia, em meio a falta de oportunidade de pessoas de baixa renda, face à economia tecnoindustrial crescente na cidade.
Desde que começaram a ocupar o terreno, os moradores realizavam assembleias e manifestações com apoio de outros movimentos, sempre buscando acordos com o Estado para o direito à moradia. A organização do Pinheirinho fez com que o bairro possuísse planejamento para um crescimento adequado, como energia elétrica, ruas, lotes padronizados, comércio e serviços e até organizações religiosas, tudo conforme o Código de Obras e regularizações urbanísticas da cidade.
No entanto, a despeito dos esforços dos moradores para o desenvolvimento da área como um bairro propriamente dito, ela caracterizava-se como Zona Industrial de acordo com o Plano Diretor de 2006 do munícipio. Em 2010, decorre na Câmara a votação acerca da nova lei de zoneamento de São José dos Campos, tendo como uma das pautas a conversão da área do terreno em ZEIS, que em muito facilitaria a compra e regularização do terreno pelo poder público municipal.
A conversão não ocorreu, mas foi garantido pela prefeitura o cadastramento das famílias na CDHU e o início de um projeto de regularização para que, posteriormente, a área pudesse ser transformada em ZEIS. Porém, ao longo dos anos o comprometimento da prefeitura com a regularização diminuiu cada vez mais, até o ponto de negarem que a questão fora um dia prometida. Até mesmo o governo federal, que mostrava interesse em comprar a gleba e auxiliar as famílias em 2011, negou a intenção à medida que os embates jurídicos acerca da reintegração de posse se acirravam. Fernandes (2001) afirma que com a crescente pobreza social, o Estado tem um poder importante em conduzir o processo de desenvolvimento urbano (FERNANDES, 2001 apud. GNANN, BERNARDINI, 2019, p. 15). Houve muitas tentativas por parte dos moradores do bairro de pressão ao poder público pela regularização, se organizando enquanto movimento com auxílio jurídico.
Os pedidos de reintegração de posse até seu cumprimento em 2012 foram três, sendo o primeiro logo após sua ocupação em 2004 (CAPRIGLIONE; GRANJEIA, 2012). Ao entrar na esfera da Justiça Federal em 2011 – instância esta que já havia suspendido a reintegração anteriormente, prevaleceu a decisão da Justiça Estadual, no âmbito da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, de efetivá-la. A decisão da Juíza em questão, alegada como nova em detrimento da anterior, cassada, se deu sob a justificativa de ser uma questão de direito à propriedade da empresa em que não cabe a reivindicação ao direito à moradia dos réus. Ainda, alegou que todas as intenções colocadas pelos poderes federais, estaduais e municipais de compra e regularização da área não foram o suficiente para sua concretização, ficando efetivamente apenas no discurso.
Assim, foi conduzida a ação de reintegração de posse na manhã de 22 de janeiro de 2012, com 2000 policiais militares, a guarda municipal, cavalaria, blindado e helicóptero – uma força incongruente à ação pacífica que diziam realizar. Houve confronto com os moradores que se organizaram para resistir à reintegração, havendo quantidade considerável de relatos de abuso e violação dos direitos humanos pela ação policial como resposta. O que era noticiado na época, no entanto, mostrava parcialmente o ocorrido, de modo que o cenário de batalha foi obliterado pela mídia nacional.
A situação das famílias desalojadas após o evento
Os moradores foram realocados para galpões, igrejas e quadras de escolas, locais sem condições de habitabilidade. Suas casas foram rapidamente destruídas, muitas com pertences insubstituíveis, para que não ocupassem novamente o terreno. O violento processo de reintegração de posse resultou em mais de 600 ações de indenização por violação de direito dos moradores (GNANN; BERNARDINI, 2019, p. 6).
Com as casas demolidas e os moradores provisoriamente alocados em péssimas condições, a prefeitura e o governo estadual foram obrigados, a partir de uma ação civil da Defensoria Pública, de fornecer três refeições diárias às famílias desalojadas, condições dignas de higiene e acompanhamento médico, além do pagamento do auxílio-aluguel de R$500 pelo tempo em que as unidades habitacionais prometidas não fossem entregues.
Nota-se que todas essas medidas de amparo aos desalojados, das emergenciais às de longo prazo, não foram elaboradas junto ao processo de reintegração do terreno, sendo tomadas somente após pressão pela repercussão do caso. A princípio, tanto a prefeitura de São José dos Campos quanto o estado de São Paulo, à época governado por Geraldo Alckmin, não planejavam se responsabilizar pela situação das famílias.
As consequências da falta de uma política habitacional
Colocando em perspectiva todas as camadas de gastos públicos que se sobrepuseram, fica claro a má interpretação dos três poderes, nas três esferas, não só do que seria mais digno mas também do que seria mais eficiente na resolução do caso.
Para validar a soberania da propriedade privada de um especulador financeiro (cuja dívida ao poder público, aliás, se estende até o momento atual), a prefeitura e governo do estado agenciaram gastos incomensuráveis. São eles: o da operação policial desmedida, o da realocação das famílias a abrigos provisórios, da assistência alimentar e médica pelos 50 dias que duraram, do auxílio aluguel de 1.750 famílias por cinco anos e os das defesas das inúmeras ações judiciais de indenização movidas.
Por sua vez, o início das obras das unidades habitacionais prometidas às famílias assim que o poder público foi ordenado a se responsabilizar se deu apenas em 2014. E a entrega das chaves em 2016, após cinco extensões de prazo.
A obra foi paga em convênio entre a prefeitura, o governo do estado, a partir do CDHU, e o governo federal, a partir do PMCMV. Ao todo, custou R$163 milhões, sendo 1700 unidades de 47m², em um terreno a sudoeste da cidade, afastado do centro e a 12km da área desocupada. O projeto do novo bairro, denominado Pinheirinho dos Palmares, atendeu à necessidade de serviços públicos essenciais como creche e escola. Porém a qualidade de sua inserção urbana evidencia a falta de interesse de seus agentes de contribuir ao pleno direito à cidade das famílias.
Nesse sentido, se torna evidente que, a despeito de todas as intenções colocadas pelos Estado de auxílio a essas famílias, a prioridade era a manutenção da valorização da terra. No ano da reintegração, o terreno era avaliado em R$100 milhões (AMORIM, 2013), face aos R$7 milhões do ano de sua ocupação, e isso se dá por um processo claro de crescimento de atratividade financeira da região. Portanto, validar a existência de bairro residencial que romperia com essa especulação naturalmente não interessaria ao Estado estabelecido sob uma lógica mercantil.
Mas isso não estava claro para os moradores desde o princípio, já que, como foi abordado, a prefeitura confirmou que a área seria desapropriada e regularizada. E mesmo que o poder municipal estivesse desde o começo explicitamente determinado a reintegrar o terreno para seu proprietário, como o fez, os gastos com auxílio aluguel poderiam ter sido menores ou mesmo evitados. Caso houvesse o planejamento de alternativas aos moradores antes da reintegração, a sucessão dos eventos poderia ter sido mais bem controlada no que se refere aos recursos municipais.
Considerações finais
A garantia do direito à moradia pelo poder público municipal não esteve, nesse como em outros casos similares, pautada previamente. É inegável que na mesma medida em que o terreno se valorizava ao longo dos anos, a ocupação pela comunidade se consolidava. Não havendo resolução do caso ou colocação de alternativas por meio de políticas habitacionais, o caminho escolhido foi o mais custoso, ética e financeiramente. Mesmo dispondo de alguns instrumentos que certificariam que a função social da terra e o direito básico à moradia estivesse sendo cumpridos, o Estado optou por não usá-los.
Como colocado, mesmo a Juíza responsável pela ordem de reintegração afirmou que não houve interesse dos poderes em dar continuidade no processo de regularização, o que ficou evidente. Isso deu brecha para que se seguisse com a garantia do direito a propriedade de Nahas, ressaltando ainda mais a omissão do Estado, colocando a propriedade privada da Massa Falida Selecta acima do direito à moradia dos moradores do Pinheirinho.
Todo o histórico de luta do Pinheirinho revela e reflete como o Estado, além de ignorar o enorme problema do déficit habitacional, pode injustamente proteger multimilionários acima do direito de moradia de famílias de baixa renda. O direito da propriedade privada existe, mas ele não é absoluto, a propriedade precisa cumprir função social segundo o Inciso XXIII do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, onde estão previstos direitos fundamentais, com objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do país. Vale destacar que a área do Pinheirinho atualmente continua desocupada e não ocorreu nenhum novo processo de ocupação. O vazio que permanece ali indica a falta de planejamento urbano, produto da especulação imobiliária, da violência e da injustiça social.
*Imagem destacada: Carlos Latuff, 2012. FONTE: <https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/sao-jose-dos-campos/>
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