Ana Luiza Correa e Carolina Moraes
“Qualquer análise superficial sobre as cidades brasileiras revela uma relação direta entre moradia pobre e degradação ambiental.” Ermínia Maricato
Os primeiros núcleos urbanos nas cidades amazônicas surgiram nos leitos dos rios, principalmente devido ao seu uso de rota comercial. Mas, visando preencher de forma mais acelerada os “vazios” demográficos dessa vasta região, foram consolidadas diversas políticas de incentivos fiscais para atrair mais comerciantes e movimentar a economia local. Esse processo se deu de forma bastante desordenada, desacompanhado de garantias ao Direito à Cidade, fato esse que gerou a ocupação de áreas de preservação ambiental permanente e a ausência dos serviços públicos básicos de saneamento, educação, saúde, transporte e outros. Dessa forma, com uma das maiores taxas de crescimento urbano do mundo, as cidades amazônicas concentraram 80% de seu crescimento em ocupações informais, sendo isso, de acordo com o IBGE de 2010, em torno de 463.444 domicílios em aglomerados subnormais de palafitas às margens de córregos, rios, manguezais, dunas, rodovias, em áreas de linhas de transmissão de alta tensão e outros.
Neste cenário, as piores condições habitacionais se concentram nos estados do Pará, Amazonas e Amapá, o último tendo apenas na sua capital Macapá mais de 13.800 habitações precárias de acordo com IBGE de 2010 com taxa de crescimento de 20% a cada 4 anos.
A primeira grande onda de aumento populacional macapaense foi em 1940 com a implantação de projetos de exploração mineral na região. O processo tomou outras dimensões em decorrência da sua transformação de território para unidade federativa em 1988 e com a criação da área livre de comércio de Macapá e Santana. A grande onda migratória veio majoritariamente da população em busca de novas condições de vida vinda do Nordeste, da Amazônia e do Pará, fazendo com que na década de 1990, a ocupação da cidade, especialmente para a população mais pobre, tomasse formas dramáticas. Assim como no restante do Brasil, a supervalorização das terras nos centros urbanos, que favorece os grandes grupos econômicos atuantes no espaço, direciona a população da classe baixa e classe média baixa a procurar locais afastados do setor de serviços públicos e privados.
Estes migrantes, em sua maioria desprovidos de qualificação profissional, foram atraídos pela esperança de trabalho e melhores condições de vida, mas depararam-se com uma realidade completamente diferente, ficando sem amparo, emprego e recursos financeiros, restando como alternativa de moradia a ocupação das áreas de ressaca, que são espaços desprovidos de infraestrutura capaz de suprir as necessidades básicas de saúde e habitação da população. A respeito destas ocupações escrevem Ferreira e Uemura:
“Instalarem-se — não sem o apoio muitas vezes irresponsável dos próprios políticos — nas únicas áreas onde, por lei, nem o Estado nem o mercado imobiliário podem atuar: as áreas de proteção ambiental, beiras de córregos, mananciais, encostas de florestas protegidas foram pouco a pouco sendo ocupadas, sob a benevolência do Estado e de toda a sociedade (Ferreira e Uemura, 2011, p. 16)”.
O termo “ressaca”, no âmbito socioterritorial, é uma expressão regional utilizada para denominar um ecossistema característico de zonas costeiras do Amapá. São áreas alagadas de proteção ambiental que fazem parte de uma rede de canais e igarapés que possuem como função a reserva natural de água e controle do microclima da cidade, como explicitado no atual Plano Diretor. Sofrem ação direta das marés e das chuvas, e deveriam fazer o escoamento dessas águas evitando inundações. A ocupação irregular dessas áreas afeta diretamente o ecossistema fundamental para o equilíbrio ambiental, tendo provocado danos irreversíveis ao meio ambiente, o que afeta não só a natureza, mas a própria atividade humana. Estima-se que mais de 32% das margens das ressacas estão ocupadas, o que conforma cerca de 90.000 pessoas de acordo com o IBGE 2010. Ainda que até hoje não sejam disponibilizados dados atuais seguros, estes apresentados servem para se ter noção da dimensão dessas ocupações em Macapá.
Nessas áreas, a população em sua maioria interiorana advinda das ilhas do Pará e do interior do próprio estado do Amapá, passou a reproduzir práticas socioespaciais típicas do seu modo de vida anterior, onde a relação direta com o rio e a prática rural estão muito presentes. Desse modo, as ressacas tornaram-se locais estratégicos de sobrevivência e também palco para reprodução de comportamentos socioculturais distintos dos da capital até certo ponto, citadina. Sendo as ressacas espaços sociais frutos da dinâmica das relações desiguais estabelecidas na sociedade, a área deixa de ser apenas um território a ser compreendido pela sua estrutura física, mas também espaço produtor de suas próprias conexões.
O tratamento de esgoto é inexistente e, justamente por não conhecer o sistema de esgotamento, a maioria da população associa a rede coletora de águas pluviais à destino para despejos. A atual condição de manutenção da estrutura é tão precária que chega a aumentar os problemas, que não são poucos, dos moradores dessas áreas. Por ocasião das chuvas, frequentemente as galerias ficam obstruídas pelo lixo. A água, impedida de ser canalizada passa a escoar superficialmente, apresentando como consequência inundação às residências. Além do lixo, depositado sobre as águas, as residências ficam expostas à contaminação por diversos agentes como a leptospirose, hepatite, malária, dengue e outras. Mesmo assim, por piores que sejam as condições ambientais nas áreas urbanas de ocupação irregular, estas são, para milhares de indivíduos, a única possibilidade de acesso à cidade e ao consumo.
Nas áreas de ressaca, as casas são de palafita em madeira construídas acima do nível da água para evitar de serem carregadas pela movimentação das marés. Elas se conectam entre si mediante passarelas de madeira e com a cidade pelas mesmas. Normalmente as ocupações iniciam em áreas que são acessadas por rodovias asfaltadas, o que denuncia que apesar de a população ser taxada como agressora ao meio ambiente, a região já havia sido delimitada e alterada devido a construção de tais estradas.
Para as casas existe a distribuição de serviço de água sem custos efetuada pela companhia estatal, mas a infraestrutura do serviço são espécies de “puxadinhos” feitos pela própria população para que seja possível penetrar áreas mais distantes das rodovias, e, portanto, de mais difícil acesso, assim como os “gatos” puxados dos postes de energia elétrica. Todos esses problemas configuram conflitos urbanos locais que se agravam por disputas territoriais certas vezes extremamente violentas, já que a Polícia Militar não entra em locais que se acessa apenas pelas passarelas de madeira. Dentre os crimes listados, os principais em ordem são homicídio, roubo, agressão à mulher, agressão à criança, trabalho infantil, prostituição e drogas, configurando o lugar como palco de problemas sociais complexos.
A s formas de ocupar pelas palafitas destacam um certo dinamismo do processo de ocupação, abrangendo um setor importante da produção de espaço urbano, com movimentação de atividades autônomas, tal qual a carpintaria, além da geração e ocupação de postos de trabalho, já que ao contrário das favelas em boa parte do Brasil, 46% das casas são construídas a partir de mão de obra contratada, ficando na frente dos 39% que a constrói por mutirão familiar. Essa mão de obra constrói de forma não homogênea -e em constante necessidade de manutenção- os becos e passarelas largas, as áreas em terra firme ou alagadas, as casas pequenas ou grandes de dois andares dependendo da disponibilidade financeira de cada morador, que tem em sua maioria renda de 2 salários mínimos.
A respeito da sua materialidade, as coberturas usualmente de duas águas, são de fibrocimento com beirais. As fachadas buscam o maior número possível de aberturas para facilitar a circulação dos ventos por ser uma região muito quente. A maioria das casas são de madeira, sendo necessária a sua reconstrução a cada 5 anos aproximadamente. Quando não, as que possuem partes aterradas em solo firme, possuem alguns elementos de alvenaria, mas tal prática é mais prejudicial ao meio ambiente por diminuir a área permeável do solo e agravar as enchentes.
Em sua maioria as casas são grandes, com 4 cômodos, o que gera alguns conflitos para os moradores que são destinados a morar em conjuntos habitacionais por estarem alocados em zonas com perigo de vida. Normalmente são compostas por sala de estar e jantar conjugadas, cozinha, quartos, varanda, algumas possuem área de serviço e o banheiro como um anexo. As técnicas construtivas e materiais possuem uma linguagem regional, onde são aproveitados os aspectos plásticos da madeira para firmar um cuidado estético por parte dos moradores com a sua residência, com portões, demonstrando sentimento de posse, arcos de passagem, guarda-corpos, objetos de ornamentação e uso de cores vibrantes na área externa. Pesquisas nessas áreas revelam um caráter subjetivo na relação dos seus moradores com o local, conjugados pela manutenção de um sentimento de pertencimento àquele território, que se configura em 90% como a casa própria com título de posse.
Dessa forma, devido ao grande sentimento de comunidade, são formadas entidades de representação social que dialogam diretamente com o Ministério Público em busca de melhorias das áreas alagadas para permanência da população, visto que essas já se estabeleceram na cidade de forma consolidada e constituem também uma cultura e dinâmica de moradia próprias distintas das moradias regulares formais. Em 2013, foi implantada a partir de uma iniciativa de influência do poder público em algumas regiões o programa “Morar Melhor”, que se propôs a revitalizar as pontes de acesso às casas nas áreas de ressaca. Essas revitalizações fazem com que a população permaneça no local onde vivem, e sem instrução e nem fiscalização, muitos aterram os alagados, piorando mais ainda a situação ambiental. Diante desse cenário, muitos especialistas consideram a situação irreversível, sendo a remoção dessas famílias muito complexa e quase impossível.
As remoções são hoje realizadas apenas em áreas de estado grave de alto risco, e os habitantes são realocados para os conjuntos habitacionais, apartamentos alugados ou casas de parentes, sendo que muitos moradores relatam que valor pago pela prefeitura para o aluguel dos apartamentos não dialoga com os reais valores de mercado. Já as ocupações nas ressacas que não estão em zona de risco permanecem como estão, o que por um lado traz benefício pois grande parte dos moradores gostaria de ficar onde estão, mas, por outro lado, não são efetuadas melhorias a longo prazo para que as condições de habitabilidade sejam menos insalubres e causem menos impacto ambiental.
Levando em consideração o histórico de tentativas anteriores de resolução da problemática da moradia realizadas pelos órgãos responsáveis, compreende-se que uma série de fatores levam os moradores a voltar para as áreas irregulares. Segundo dados do Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do Amapá (IMAP), na década de 1990, na intenção de resolver o problema do crescimento populacional e ocupação das áreas de ressaca, foram implementados pelo governo estadual 7 loteamentos populares principalmente em zonas periféricas, afastadas do centro onde se localizavam as atividades urbanas. Os loteamentos somaram 8.078 lotes urbanos. Nesses novos assentamentos não foram implementadas casas, apenas lotes abertos para ocupação, e estes foram entregues sem infraestrutura de água, esgoto, energia e pavimentação, além de estarem inseridos em bairros recém-criados, onde não havia sequer sistema de transporte público para manutenção da relação com os centros urbanos.
Esse tipo de solução continuou sendo implementada, gerando novos bairros periféricos hoje melhores desenvolvidos, até o ano de 2007, quando começou a construção de conjuntos habitacionais com o aporte de programas federais. Dentre estes estão o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que pertence ao Ministério do Planejamento e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), geridos pela Caixa Econômica Federal (CAIXA) e financiados pelo Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). A problemática dessas medidas, se dá principalmente pela distância que essas moradias possuem dos centros urbanos, pela pouca infraestrutura das regiões de implantação e também pela necessidade de muitas unidades habitacionais ser resolvida através de edifícios verticais, em que a população “ribeirinha” perde completamente a relação com a moradia, com a cidade, com os vizinhos e com a forma de viver que estava acostumada anteriormente, resultando na quebra de uma cultura própria e insatisfação de milhares de pessoas, que voltam a ocupar as áreas de ressaca mesmo sem o auxílio das entidades públicas. Todas as medidas tomadas pelo poder público até hoje não foram suficientes e nem eficazes para suprir a necessidade populacional instalada na capital, sendo ele um dos maiores agentes responsáveis pela precariedade urbanística existente na cidade de Macapá.
Imagem destacada: Arquivo da SEMA/ AP
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